Resenha de Contracorrente por Viviana Bosi (2000)

Frederico: intempestivo e vivo

Negatividade e inconformismo marcam poemas de “Contracorrente”, de Frederico Barbosa

Viviana Bosi

 

A polêmica se instaura tão logo começamos a leitura do terceiro volume de poemas de Frederico Barbosa, pois o título, “Contracorrente”, já anuncia a posição aguerrida, reforçada imediatamente pela orelha, do próprio poeta, e pelo posfácio, de Antonio Risério. Ambos advogam para este livro a descendência, mais rigorosa, da vertente estética cabralina e dos experimentos vanguardistas de Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos e se colocam em atitude de recusa a correntes poéticas diversas da herança concretista. “Negatividade” e “áspero inconformismo” são algumas das marcas que Antonio Candido lhe atribui, na contracapa. Todos esses comentários suscitam uma impressão inicial que inclina o leitor a penetrar no livro despertado previamente para uma atitude de disputa ou adesão, dependendo de seu ponto de vista (se é que hoje tais questões ainda carregam um potencial combativo). A diagramação cuidada, em letras capitais destacadas em negrito, visíveis como um cartaz futurista, proclama a vocação para o bramido que vários poemas portam. Desde a dedicatória e a epígrafe, o livro enfatiza o protesto: “EXISTIR! RESISTIR!”. O caráter de manifesto aparece já no primeiro, “Poesia e Porrada”, que insiste, veemente, no enfrentamento agressivo do tédio e do bom-mocismo correto da poesia contemporânea, que considera parnasiana e comportada. Em vez do versinho de “pé no gesso/ regrado”, prefere “chutes feridas/ de pé descalço// Arrisco sem meta/ Ou metro estimado”. A força do poema advém da ira e do ressentimento, agora potenciados pela linguagem contundente e rítmica: “Eu/ insulto/ Revolto o gesto.// Solto minha rocha em versos/ Pedras-de-raio”. Energia concentrada explode em “I, The Tempest”: “VIVER INTEMPESTIVO ESTRONDO RAIO RISCO SEM ENSAIO ARRISCO// VIVOVIVOVIVOVIVO”. Será que esse poema de carnadura “verbivocovisual” não afirma, contradizendo-se, que a melhor maneira de exprimir a vitalidade estaria na realização do impulso do instante, “sem ensaio”, contra as simetrias formais que ele mesmo realiza? Por que diz expurgar de sua poética os lampejos “intempestivos” dos anos 70, como se os riscos da liberdade fossem necessariamente sinônimos de negligência? Os cortes e assepsias exigidos pela perfeição lúcida e autocrítica podem levar, no extremo, ao mero trocadilho intelecto-sonoro.

Felizmente, tal não ocorre neste livro, que aprofunda os desvãos de uma revolta cavada no pó: a rebeldia inicial reverte num sentimento amargo de quase fim e nada: “Desexistir”. Para exprimir o labirinto ruinoso da agoridade, Frederico Barbosa escolhe o olhar incisivo sobre o momento, o que se vê em fresta: cenas rápidas capturadas como fotografia ampliada em que se pode imaginar o que anima os movimentos da moça que passa, da jovem que lê, da garota que o visita… discretas epifanias na intimidade registradas com beleza. Chama a atenção do leitor o trabalho com a palavra, que insiste nos ecos de som e sentido: “São? Somos? Sombras de assombros?”. Em “Quando Chove”, a cidade de São Paulo, inundada, parece palimpsesto: sobre e sob as ruas, rios correm, alguns invisíveis.

Ainda que descrente e esquivo, não escolhe se refugiar só na intimidade ou apelar para a objetividade gravurista, como extremos pontos de fuga: decide resistir na contracorrente, alternando brabeza e doçura para incitar a indignação e a vontade de viver, se comprometendo com o possível: “Raro cantar de amor entre os escombros”. Seu poema em homenagem a Cabral, um ponto alto do livro, participa da estética do toureador, que volteia firme e conciso em seu “não” e na morte não se rende.

Sabendo de antemão que o sujeito é resquício que viveu demais e “passara do ponto” em seu anelo de transformação, propõe, na série “31/12/1999”, uma contagem regressiva entremeada de considerações irônicas que terminam com o zero: “Chegamos à nova era/ e ela já era”. Ao mesmo tempo, sua palavra contraditória acorda a fome de vida e o desejo do encontro.

 

Resenha publicada no Caderno Mais!  da Folha de S.Paulo, no dia 26 de novembro de 2000.

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