Entrevista a Linaldo Guedes – 2013

Frederico Barbosa: “Quanto mais lemos, mais vivemos”

Por Linaldo Guedes

Publicado no portal ReporterPB

Nascido em Recife, em 1961, Frederico Tavares Bastos Barbosa migrou para São Paulo, como a maioria dos nordestinos, passou pelos Estados Unidos, mas foi na capital paulista que tornou-se uma referência entre o que se produz de melhor na poesia brasileira contemporânea hoje. Não poderia ser diferente para o filho do professor e crítico literário, João Alexandre Barbosa, e da professora e crítica de arte, Ana Mae Barbosa. Lidar com a linguagem artística, é algo inerente ao talento de Frederico Barbosa, que está lançando neste mês de junho “Na Lata” (Editora Iluminuras), livro que reúne toda sua produção poética espalhada em oito livros, revistas, jornais e site diversos, desde 1978 até os dias atuais.

Frederico Barbosa reconhece que sua poesia é recheada de reminiscências e influências literárias, como afirma a crítica Leyla Perrone-Moisés. “Eu diria até que a vida não se compõe apenas do que vivemos, mas também do que lemos. Creio que toda existência se confunde também com a ficção que a pessoa consumiu. É por isso que ler é tão importante: quanto mais lemos, mais vivemos”, filosofa. Barbosa defende que a poesia deve causar o maior impacto possível no leitor e que só os ingênuos ou mal intencionados acreditam que criaram algo de novo na contemporaneidade. Otimista quanto ao futuro, em termos de qualidade poética, Frederico – que à frente da Casa das Rosas, em São Paulo, abre espaço para todas as tendências literárias – afirma que não se pode rasurar ou ignorar tudo o que foi introduzido pela poesia concreta na poesia brasileira.

REPORTERPB – Depois de 35 anos de poesia, você está lançando sua obra poética reunida num único livro. O que realmente cabe em “Na Lata”, obra que está saindo pela Iluminuras?
Frederico Barbosa
: Estão reunidos “Na Lata” todos os poemas que publiquei em meus oito livros anteriores, acrescidos de poemas publicados em revistas, jornais e sites diversos. Em suma, toda a poesia que escrevi entre 1978 e 2013, com exceção de alguns poemas circunstanciais e satíricos recentes que reservei para um livro novo que estou escrevendo intitulado “Fábrica de Carapuças”, que pretendo lançar em breve.

Como está dividida a obra?
Toda “obra completa” que eu conheço apresenta, um a um, os livros do autor de forma cronológica, mesmo quando invertida, como nas compilações originais de João Cabral de Melo Neto. Mas como tenho poemas espalhados por todos os meios, não necessariamente recolhidos nos meus oito livros,  optei por retirar todos os poemas de seus livros originais, reuni-los “na lata” e organizá-los de novo, agrupando-os seja por método de composição, seja por proximidade temática. Assim, reorganizei-os em nove seções diferentes. Cabe ao leitor descobrir os critérios por trás de cada uma delas.

Leyla Perrone-Moisés vê dois círculos na sua poesia, o primeiro traçado nas areias de Boa Viagem e o segundo na biblioteca paterna. Por essa ótica, seria correto afirmar ser sua poesia recheada de reminiscências e influências literárias?
Sim, mas qual não é? Eu diria até que a vida não se compõe apenas do que vivemos, mas também do que lemos. Creio que toda existência se confunde também com a ficção que a pessoa consumiu. É por isso que ler é tão importante: quanto mais lemos, mais vivemos. Na palavra memória cabem tanto “reminiscências” pessoais quanto “influências literárias”. Acho que qualquer poesia é resultado do atrito entre memória e desejo. A leitura da Leyla, uma das maiores críticas literárias que este país já teve, me ensinou bastante sobre minha própria poesia. Confesso que esta questão dos círculos foi uma surpresa e tanto. Um belo presente.

Você tem uma poesia carregada de imagens belíssimas, mas também objetiva em suas mensagens, como em “Poesia e Porrada”. Na lata seria uma espécie de definição para “sem meias-palavras” que sua poesia expressa em muitos versos?
Sem dúvida. Creio que a poesia deve causar o maior impacto possível no leitor. Assim, tudo na poesia tem que ser muito trabalhado para que este efeito se dê na leitura, na mente do leitor. Um verso que fica na memória do leitor é uma vitória do poeta. Como escrevi há mais de vinte anos, “no poema / não há termo meio, / meio-amor, meia-palavra.”

O erotismo é um ponto muito forte em sua poesia, não é à toa que poemas sobre o tema abrem o livro. Como fazer poemas eróticos sem correr o risco de cair na vulgaridade?
Cair ou não na vulgaridade não me preocupa nem um pouco. O conceito de vulgaridade depende do leitor. Preocupa-me escrever sobre questões universais e atemporais, como o amor e o sexo com intensidade e alguma originalidade. Para isto, escrevo sobre estas questões com bastante atenção ao meu tempo.

Poesia de lugares também, como aponta o segundo capítulo. Que viagens poéticas esse pernambucano-paulistano se permitiu? Literariamente, sua poesia está mais para as vanguardas paulistas ou para o regionalismo pernambucano?
Toda viagem é poética. Minhas viagens, principalmente pelo Brasil, foram motivo constante de poemas. Acima de tudo, escrevi sobre as minhas duas cidades, o Recife, onde nasci, e São Paulo, onde vivo há quase cinquenta anos. Escrever sobre a sua cidade não é regionalismo. Os escritores ditos regionalistas, como Graciliano Ramos e José Lins do Rego, ou o grande poeta pernambucano Ascenso Ferreira, são grandes não por serem regionalistas, mas por serem universais. Voltar-se para a sua realidade é condição essencial para qualquer escritor, que só se torna grande se consegue transcender esta especificidade, transformando o que é regional em algo universal. Minha poesia está diretamente ligada às vanguardas paulistas sim, mas não ignora os escritores fundamentais da minha terra: Ascenso, João Cabral, Carlos Penna Filho, Jomard Muniz de Britto, Delmo Montenegro, etc.

Particularmente, vejo muito de Oswald de Andrade em sua poesia, com o gosto pela paródia e pela ironia. Que influências você incorpora no seu fazer poético?
Todas! Nada se cria, tudo se transforma. Só os ingênuos ou mal intencionados acreditam que criaram algo de novo na contemporaneidade. É importante demais conhecer a literatura do passado, para não repetir ingenuamente. Mas nem sempre nossas influências são tão conscientes. Leitores inteligentes nos ensinam muito sobre nossa própria obra. O poeta e crítico Delmo Montenegro certa feita me disse que, embora eu professe sempre a maior admiração por João Cabral de Melo Neto, ele via mais influência na minha poesia de Manuel Bandeira do que do autor de Museu de Tudo. Fiquei perplexo… e ainda reflito sobre isso. Será?

O poeta escreve para não ser entendido por si mesmo?
Este poema a que você se refere tem mais de trinta anos… e nele, abstraída a organização gráfica peculiar, lê-se o seguinte: “Escrevo para não ser entendido por mim: todo poema que se entenda: mesmo meu: é redução do problema: escrevo para não ser mesmo meu problema entenda:” Ou seja, em outras palavras, quem tem que entender é o leitor. Este poema partiu do verso de Fernando Pessoa: “Sentir? Sinta quem lê!” Além de sentir, transfiro para o leitor a missão de entender o poema. Fazendo eco, também às palavras de Mallarmé: “Nomear um objeto equivale a suprimir os três quartos de prazer da poesia, que é feito de adivinhar pouco a pouco: sugeri-lo, eis o sonho.”

Em tempos de poesia minimalista, você pratica uma poética também de versos longos, como em “Certa Biblioteca Pessoal, 1991”. Qual estilo mais lhe provoca: poesia minimalista ou poemas longos?
O tamanho pouco importa. O que interessa é a densidade. Não digo “dificuldade”, mas densidade, intensidade, capacidade de provocar impacto. É claro que isto é mais difícil atingir se o poema é longo… mas o poema pequeno também pode ser vazio.

Um dos capítulos do livro mostra poemas homenageando cantores e canções. Como a música toca em sua poesia?
A música toca toda a minha vida. Um dos poemas do livro, “Rua da Moeda – Tapa na cara dos reaças” é uma defesa do rock n’roll contra os reacionários puristas do Brasil. A seção a que você se refere, “Lírica Paralela”, reúne poemas escritos a partir de canções do jazz. Sou apaixonado pela música de Duke Ellington, Ella Fitzgerald, Billie Holiday, Charlie Parker, Thelonious Monk, etc. A partir de canções destes e outros heróis, fiz poemas que deveriam ser lidos ao som destas canções. Coloquei no meu blog (https://fredericobarbosa.wordpress.com/category/musica/ ) os poemas acompanhado das canções que os inspiraram.

Já desistiu de “desexistir”?
Desexistir não é opção, é um hábito. Nada agradável, por sinal.

Como você vê o cenário poético contemporâneo no Brasil, você que foi um dos organizadores de “Poesia de Invenção”, coletânea que reuniu poetas inventivos de todo o país?
Este país melhorou muito desde 1989, quando retomamos a democracia. Assim, milhões de pessoas começam a ter acesso a aspectos da cultura que lhes eram distantes. A poesia vem, neste contexto, se popularizando muito. Aparecem poetas em todos os cantos, de todas as classes sociais, de todas as formações. É claro que, ao mesmo tempo em que o conhecimento se democratiza, ocorre também um processo de massificação e um certo rebaixamento da exigência e mesmo da qualidade. Mas é uma questão passageira. Vejo com muito otimismo a possibilidade de termos cada vez mais leitores de poesia no Brasil, que também vão, aos poucos, se tornando mais sofisticados, complexos e exigentes. O futuro me parece muito promissor: quantidade e qualidade.

Você acredita que o legado concretista ainda esteja forte no país?
O termo “legado” me parece muito discutível. A poesia concreta revolucionou totalmente a poesia brasileira. Não creio que se possa fazer nada de interessante em poesia, depois de 1956, sem levar em conta as inovações da poesia concreta. O que não quer dizer que só se possa fazer poesia concreta, ou mesmo que se deva fazê-lo. Quer dizer que não se pode rasurar ou ignorar tudo o que foi introduzido pela poesia concreta na poesia brasileira. Chamo de Poesia Pós-Concreta aquela em que se percebe que houve a poesia concreta, embora não seja mais concreta. Ou seja, a poesia que leva adiante e desenvolve para outros caminhos as propostas dos poetas concretos. Isso é o que interessa.

A direção da Casa das Rosas, com você à frente, tem promovido eventos que são referências em todo o país. Como você vê as políticas culturais existentes no país hoje?
Trabalhar com cultura neste país é muito complicado. Com literatura mais ainda, com poesia nem se fale. Uma das características principais da Casa das Rosas é sua abertura e pluralidade. Ninguém pode dizer que não foi convidado a participar de algo na Casa das Rosas. Desde poetas como Ferreira Gullar e Augusto de Campos, Affonso Romano de Santanna e Chico Alvim, aos mais ilustres desconhecidos, todo mundo já foi convidado a participar. Este é o grande segredo: a democrática participação de todos. Mesmo os mais ferozes críticos da Casa das Rosas já lançaram livros ou participaram de saraus lá ou foram convidados a participar de eventos e conversar. Alguns, veja só, simplesmente se recusaram a participar apenas para dizer que a Casa das Rosas não abriga a todos. Seria cômico se não fosse trágico. E vamos levando.

TRÊS POEMAS DE FREDERICO BARBOSA

Desexistir

Quando eu desisti
de me matar
já era tarde.

Desexistir
já era um hábito.

Já disparara
a auto-bala:
cobra cega se comendo
como quem cava
a própria vala.

Já me queimara.

Pontes, estradas,
memórias, cartas,
toda saída dinamitada.

Quando eu desisti
não tinha volta.

Passara do ponto,
já não era mais
a hora exata.

Vocação do Recife

para Jomard Muniz de Britto

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois –
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
Manuel Bandeira – Evocação do Recife

Recife sim
das revoluções libertárias
da teimosia ácida
do contra.

Não o Recife da minha infância
de golpe e exílios
gorilas e séquito
de vermes venais.

Recife sim
da coragem Caneca
da conscientização neológica
das lutas ligas lentes
do sempre
não.

Não o Recife sem literatura
no papo raso da elite vesga
a vida mole e a mente dura.

Recife sim
poesia e destino
na memória clandestina
de sombras magras
sobre pontes e postais.

Bandeira
sutil na preterição sim.

Clarice sim
frieza entranhada
na estranheza de ser Recife.

Recife sim
na literatura navalha
só lâmina solar
solidão sem soluços
só suor de João Cabral.

Recife sim
nos cortes certos
de Sebastião
contra a metáfora vaga
e o secreto.

Não o Recife sonho consumo
de turistas e prostitutas
na praia do sim
shopping sem graça
de Boa Viagem.

Recife sim
que em Nova Iorque
se revê
Hudson Capibaribe
ecos de Amsterdam.

Recife rios
ilhas retalhos
retiros velhos
reflexos de Holanda.

Não o Recife que revolta
na extrema diferença.
Não o Recife que expulsou
sua própria inteligência.

Recife sim
que se revolta
vivo.

Faca clara
que ainda fala
não.

All or Nothing at All

Tudo ou todo nada,
pedra ou furo d’água,
feito cada palavra,
lança, dardo, ferida,
em cheio nada.

De nada em nada,
o se-dizer do tudo,
feito risco na água,
onda, contorno,
reflexo de nada.

Nada feito nada,
no poema
não há termo meio,
meio-amor, meia-palavra.

Do sem
sentido intenso
se faz
um tudo atento,
feito a palavra
em
cantada,
nada
feito
nada.

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