Resenha de Cantar de Amor entre os Escombros por Linaldo Guedes (2003)

Sob os escombros, a poesia

Linaldo Guedes

A tradição lírica na literatura mundial sempre foi recorrente. Luiz Vaz de Camões é o maior ícone poético desta tradição, com suas redondilhas e sonetos. Geir Campos já dizia que nos sonetos do grande poeta português estão os seus temas de poeta “maior”: o desconcerto do mundo, as mudanças (que o tempo faz em tudo), a saudade de um bem talvez jamais experimentado, e, entre outros assuntos, o amor.

Ah, o amor na visão de Camões! “Amor com esperança já perdida,/ Teu soberano templo visitei;/ Por sinal do naufrágio que passei,/ Em lugar dos vestidos, pus a vida”. Sentimento que o fez construir clássicos, como o célebre “amor é fogo que arde sem se ver;/ É ferida que dói e não se sente;/ É um contentamento descontente;/ É dor que desatina sem doer”.

É inspirado nestes e em outros versos camonianos que me deparo com a leitura de “Cantar de Amor entre os escombros”, do paulista/pernambucano Frederico Barbosa. Lançado no ano passado, o livro faz parte da coleção Alguidar, da Landy Editora, cuja obra de estréia foi “A regra secreta”, do também pernambucano Sebastião Uchoa Leite. Trata-se, na verdade, mais de uma coletânea com poemas já publicados nos três livros anteriores de Frederico e alguns inéditos feitos especialmente para esta obra.

Na verdade, “Cantar de Amor entre os escombros” fala do cotidiano de uma relação quase sempre em busca de escapar das ruínas que cercam o coração. Clenir Belezzi de Oliveira foi, aliás, muito feliz na apresentação, quando diz: “É difícil amar em tempos de escombros. Mas não será difícil para o leitor amar esta obra em qualquer momento. Este livro de amor há de durar para além do tempo em que o ódio cessará de produzir escombros”.

Correto. Frederico Barbosa fala, neste livro, da resistência do amor aos escombros. E como encanta perceber a autodefesa do seu eu-lírico no cultivo diário do amor! Sim, porque é fácil amar na fase inicial da atração, do encantamento. Difícil é manter este sentimento quando a casa parece cair e aparecem as primeiras escaramuças do dia-a-dia (tão bem descritas por Gabriel García Márquez em “O Amor nos tempos de cólera”).

Em “formas de sentir”, primeiro capítulo do livro, Frederico Barbosa detalha as formas do corpo e a troca de olhares que (ferino) “atira” para conquista. Todo amor tem seu perfume, e Frederico Barbosa, que não fica alheio a esses cheiros, com seu estilo bem peculiar conclui: “contra olfatos/ não há ar/ gumentos”. Vozes eróticas, sabores na ponta da língua e as seis formas do sentir são mencionadas pelo poeta em seu tratado lírico.

“Sua voz, sua visão”, segundo capítulo, trata do indecifrável sorriso, da beleza distante (até meio platônica, por que não?), do sarro forçando o jeans, da já conhecida (para seus leitores fiéis) “paulistana de verão”, sobre os dribles para não sair na fotografia, descreve a anatomia do desejo e arremata em contradição lírica: “Ao longe, uma voz/ se perde,/ labirinto, em mim”.

“Sussurro suave e vivo” é um capítulo puramente musical. Convém lê-lo ouvindo Billie Holliday. Aliás, no poema “Blue Moon”, que homenageia a diva do blues, afloram assonâncias para cantar que a “sua voz sussurra suave e viva/ sob o som blue das incertas/ sílabas suas soltas certas”. Depois, é a vez de citar Ella Fritzgerald ou descrever o castelo do poeta em que circulam, vivos, “tantos Dukes, Claudes, Luchinos/ e vários James amigos/ nossos companheiros de sempre”.

“Na caverna escura”, o capítulo seguinte, é um pouco Mário de Andrade, a falar sobre a avenida Brasil e a “lente de aumento/ no amor e na impaciência” diante do semáforo. Vão por ai os poemas desta parte do livro, descrevendo o cotidiano da metrópole que gera sacadas líricas, como as da série “Raro cantar”: “Primeiro, a cidade nos escondia/ sob os relógios do cotidiano” ou “Cheios de nós, cegos entrelaçados,/ brotávamos luz, em meio à cidade” ou o poema que vale o livro:

“Hoje, continuamos, dia a dia,

Raro cantar de amor entre os escombros.

Margens sólidas e escapes se cavam

na tragédia impressa e apressada.

Em nosso canto íntimo, cercados

de livros, brancas sombras, recompensas,

Vivos esforços, às vezes um verso,

tramamos nós ao vento, desatados.

Insistimos, como pouco tenazes,

no sim: de fulgir no sono sem longe.

Cheios do resto, sem certo traçado,

plantamos planos de velhas idades”.

“Sono silêncio”, “de sonhos de ser”, “este mar, meu coração” e “revolução permanente” são os outros capítulos do livro, sempre seguindo na mesma linha de cantar a lira do amor sob aspectos vários. Frederico Barbosa reforça, nesta obra, o conceito daqueles que já o incluem entre os grandes nomes da poesia brasileira a partir da década de 90 (como este resenhista). Usa aqui e acolá dos recursos concretistas que tanto o influenciaram nos primeiros livros. Mas o que fica de “Cantar de Amor entre os escombros” é o conteúdo unitário e lírico sobre os caminhos e descaminhos do amor. Para quem pensa que escrever sobre as armadilhas de uma relação amorosa é brega, Frederico Barbosa nos dá uma lição: só é brega para quem não sabe amar com um tom poético. Esta obra, com certeza, agrada aos que ainda amam entre os escombros. E também aos idiotas que não resistiram a esses mesmos escombros.

Resenha publicada no “Correio das Artes”, suplemento literário do jornal A UNIÃO, de João Pessoa-PB, 15 de fevereiro de 2003.

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